Ricardo Guggisberg
Neste momento em que a Conferência do Clima da ONU (COP 23), concluída há poucos dias na Alemanha, recoloca no topo da agenda econômica o tema da sustentabilidade ambiental, é importante reafirmar a posição privilegiada do Brasil como produtor de um amplo leque de energias renováveis.
A questão mais urgente levantada pelo debate sobre o aquecimento global refere-se ao futuro da matriz de combustível do transporte urbano: os veículos brasileiros deverão ser movidos a eletricidade, etanol ou biomassa?
Ora, à diferença do que afirmou o economista Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, em artigo recente (“O Estado de S. Paulo”, de 4/11), não existe conflito entre etanol e eletricidade.
No Brasil, felizmente, há espaço para todas as principais tecnologias de mobilidade sustentável.
É, no mínimo, precipitada a alegação de que a opção por veículos elétricos (carros, ônibus e caminhões) implicaria em “deixar de lado” a competência brasileira na produção de etanol, em prejuízo do setor sucroalcooleiro.
Já o argumento de que mais veículos elétricos pressionariam as atuais fontes de energia, obrigando as autoridades a recorrer às poluidoras usinas termelétricas, subestima o potencial hidrelétrico brasileiro e superestima o consumo da frota elétrica nas próximas décadas.
Na análise da futura matriz de transporte, é prudente separar o conjuntural do permanente.
A crise do setor elétrico de 2014 e o tarifaço de 2015/2016 decorreram de políticas públicas erradas do passado, especialmente a MP 579/2012, que já estão sendo corrigidas.
O Brasil segue sendo um dos campeões mundiais de energia renovável. As fontes não fósseis responderam por 41,2% do total da matriz nacional em 2015.
As hidrelétricas são responsáveis por 64% da eletricidade produzida no país (2015). Somando-se as outras fontes renováveis, chega-se a 75,5% – três vezes acima da média mundial (23,1%). E o Brasil mal aproveitou um terço de seu potencial hidrelétrico!
Além disso, a decisão do governo de privatizar a Eletrobrás indica que novos investimentos em geração e distribuição poderão chegar antes da posse do próximo presidente.
Assim, não há motivos consistentes para supor que a oferta de energia hidrelétrica não possa atender a um eventual incremento da frota elétrica.
Segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), a frota nacional de elétricos (afora motos e e-bikes) resumia-se a 3.818 automóveis e utilitários leves e a 383 ônibus e trólebus no final de 2016– uma fração ínfima dos 43 milhões de veículos que hoje movem-se a diesel, gasolina ou etanol.
Um estudo da área de Veículos Pesados da ABVE apontou que se todos os 15 mil ônibus a diesel da cidade de São Paulo forem convertidos a elétricos puros nos próximos 15 anos (um cenário extremamente otimista) haverá um aumento de apenas 5,7% no consumo municipal anual de eletricidade, ou seja, mais 1.564.299 mw/h, de um total de 27.441.478 mw/h (2016). E ainda assim só no décimo quinto ano.
O mercado de veículos elétricos no Brasil tem um imenso potencial de crescimento sem pressionar a oferta de eletricidade. E a hipótese de que possa ameaçar o setor sucroalcooleiro é um evidente exagero.
Já o argumento de que a futura matriz mundial de energia deveria concentrar-se nas “vocações regionais” de cada país simplesmente não se aplica ao Brasil.
Além da liderança no etanol, o país já tem a 5ª maior capacidade instalada do mundo para energia eólica, e em 2018 poderá ficar em 15º lugar em energia solar.
O Plano Decenal de Expansão de Energia do Ministério de Minas e Energia prevê que a matriz renovável de eletricidade saltará de 75,5% do total (em 2015) para 86,1% em 2024 (65,8% só de hidrelétricas).
No Brasil, portanto, há várias vocações possíveis – e não há motivo para escolher uma em detrimento de outra.
E cumpre lembrar que o veículo elétrico não é um modismo importado de países ricos.
As primeiras linhas de trólebus de São Paulo foram inauguradas em 1949 – há 68 anos. Seguem prestando bons serviços.
O primeiro ônibus elétrico-híbrido do mundo foi produzido no Brasil pela Eletra – há 15 anos.
Ônibus movidos a bateria da BYD já circulam em cidades como Campinas e Santos, em operações comerciais.
O primeiro caminhão elétrico mundial da Volkswagem, o e-Delivery, foi lançado no início de outubro deste ano na Alemanha com tecnologia totalmente desenvolvida no Brasil – pela Eletra e pela WEG, empresas 100% nacionais.
A mobilidade elétrica, assim, pode ser considerada uma vocação tão brasileira quando o combustível extraído da cana-de-açúcar.
Por fim (mas não menos importante), é urgente combater a poluição do ar nas grandes cidades.
A troca da gasolina ou do diesel por etanol sem dúvida reduz as emissões de gás carbônico (CO²) e contribui para mitigar o efeito estufa. É certamente a melhor opção para o transporte rodoviário a grandes distâncias ou nas cidades menores.
Mas tal benefício não é seguro no caso dos materiais particulados (MP) e, principalmente, dos óxidos de nitrogênio (NOx) – os agentes mais prejudiciais à saúde nos centros urbanos.
O veículo elétrico será indispensável para limpar o ar das grandes metrópoles e reduzir as mortes atribuíveis à poluição – que chegam a quase cinco mil por ano só na cidade de São Paulo.
Em suma, o Brasil é um dos poucos países industrializados cujos recursos naturais e tecnológicos permitem uma matriz energética limpa e diversificada.
Qualquer estratégia que exclua uma tecnologia em benefício de outra será apenas mais um exemplo de desperdício de talento e investimento.
O etanol garantiu ao Brasil a liderança mundial em combustíveis sustentáveis por 30 anos, a partir de 1975. Essa expertise veio para ficar, e não se contrapõe à eletricidade.
A liderança ambiental brasileira em combustíveis renováveis será reafirmada não com o conflito, mas com a confluência de ambas as tecnologias.
Há, sim, espaço para todos. E esta é a principal vantagem comparativa do país.
Ricardo Guggisberg é presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE).
Deixe um comentário